Plataforma do governo quer rastrear e certificar o uso de materiais reciclados, começando pelo plástico; saiba como
24/10/2025
(Foto: Reprodução) Plataforma do governo quer rastrear e certificar o uso de materiais reciclados
Em meio à pressão global por metas ambientais mais transparentes e eficientes, o governo brasileiro prepara uma ferramenta inédita para rastrear o ciclo de vida dos produtos e separar discurso de prática quando o assunto é sustentabilidade.
O Recircula Brasil, que será apresentado oficialmente na COP30, em Belém (PA), é uma plataforma pública criada para responder a uma pergunta direta: quando uma empresa diz que usa material reciclado, isso é comprovado?
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Desenvolvida com participação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), a iniciativa promete estabelecer um padrão de certificação e rastreabilidade para a chamada economia circular.
♻️🌍 ENTENDA: A economia circular busca substituir o modelo de “produzir, usar e descartar” por um ciclo em que tudo é reaproveitado, reduzindo resíduos, prolongando o uso dos produtos e transformando sobras em novos recursos.
A base é técnica, mas o propósito é claro: dar lastro de dados ao setor produtivo e reduzir as incertezas em torno do uso de reciclados.
A ferramenta cruza informações de documentos oficiais, como notas fiscais eletrônicas, e calcula o chamado balanço de massa, o quanto entra e sai de insumos reciclados em cada etapa.
Com isso, emite selos de rastreabilidade e conteúdo reciclado para quem comprovar o uso real do material.
A ideia é transformar o que antes era apenas uma declaração voluntária em uma evidência mensurável e auditável.
“O Recircula Brasil já opera com uma base sólida de dados setoriais, lastreados em documentos oficiais”, afirma Ricardo Cappelli, presidente da ABDI.
Segundo ele, mais de 40 mil toneladas de plásticos reciclados já foram verificadas até janeiro de 2025, provenientes de 304 fornecedores em 11 estados e destinadas a 1.497 clientes em todo o país.
Garrafas plásticas no lixo de Manila, nas Filipinas, em foto de 20 de julho de 2020.
Eloisa Lopz/Reuters
O programa, contudo, nasce em um cenário de contrastes dentro da indústria nacional.
Segundo um levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a adoção da economia circular no país avança em ritmos muito diferentes.
Enquanto setores como calçados (86%), biocombustíveis (82%) e equipamentos eletrônicos (81%) já incorporam práticas circulares de forma mais estruturada, áreas como a construção civil (39%), as gráficas (40%) e o setor farmacêutico (33%) ainda patinam.
A média nacional esconde ainda um abismo de mais de 50 pontos percentuais entre os segmentos mais avançados e os mais atrasados.
A ABDI defende, porém, que o sistema é um passo inicial para padronizar dados e criar confiança entre compradores e fornecedores.
Mas especialistas ouvidos pelo g1 destacam que a virada depende também de cultura empresarial e de incentivos econômicos.
“O setor precisa encarar a circularidade como elemento central do negócio e parte integrante do processo de tomada de decisão”, avalia Beatriz Luz, presidente do Instituto Brasileiro de Economia Circular (Ibec).
Abaixo, saiba mais como deve funcionar o programa e qual deve ser o desafio a ser enfrentado pelo governo.
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Demanda, regra e escala
Um ponto importante pra entender essa história é que a economia circular só funciona quando deixa de ser promessa e passa a girar de verdade: quando existe demanda, regra e mercado para sustentar o ciclo.
No Brasil, o que especialistas apontam, é que essa engrenagem ainda patina: faltam compradores, metas claras e mecanismos de verificação que mostrem, com dados, o que é de fato reciclado e o que continua apenas no discurso.
Por isso, criar um mercado para soluções circulares, que vão do aço de baixo carbono ao plástico reciclado certificado, é visto como um passo essencial para que a economia circular deixe de ser ideia e passe a fazer parte da prática.
A lógica é direta: sem quem compre, não há escala. Assim, incentivos públicos, parcerias entre empresas e educação da sociedade aparecem como caminhos para criar essa base.
Mas circularidade não é só trocar máquinas ou mudar processos. É um novo jeito de pensar: usar menos, aproveitar mais e medir resultados por outro tipo de indicador, que valoriza durabilidade, reuso e eficiência.
Setores como a siderurgia já começam a enxergar que isso não é apenas uma meta ambiental, mas uma estratégia de competitividade.
Um exemplo é o da Gerdau, que ampliou o uso de sucata metálica como matéria-prima em suas usinas e hoje fabrica mais de 70% do seu aço a partir de material reciclado.
A empresa monitora a origem da sucata, calcula a economia de emissões de CO₂ e reduz custos ao evitar a extração de minério de ferro, um tipo de prática que ajuda a criar uma nova lógica de mercado, em que o valor não está apenas na produção, mas na circularidade do ciclo.
O presidente da ABDI, Ricardo Cappelli, fala durante o lançamento da Plataforma Recircula Brasil, em São Paulo. A iniciativa, criada em parceria com a Abiplast, usa dados de notas fiscais eletrônicas para rastrear o ciclo do plástico, da coleta à reciclagem.
ABDI
Outros setores também começam a se mover, ainda que em ritmos desiguais.
Na indústria têxtil, por exemplo, marcas nacionais testam sistemas de logística reversa de roupas e fibras reaproveitadas. No ramo automotivo, cresce o investimento em remanufatura de peças, uma forma de prolongar a vida útil de componentes e reduzir o desperdício de insumos.
Mas, segundo quem acompanha de perto essa agenda, a transição costuma ocorrer em etapas. Primeiro vêm as ações internas, depois os ajustes de eficiência, e só então a fase mais ambiciosa, quando a economia circular passa a orientar decisões e parcerias.
É essa terceira fase que o programa Recircula Brasil tenta acelerar, transformando a circularidade em prática concreta no país, e não apenas em conceito de relatório.
Por isso, na COP30, o governo quer mostrar que o Brasil está saindo do campo das promessas e avançando para a comprovação com base em dados verificáveis.
A aposta é no chamado sistema MRV, sigla para monitoramento, relato e verificação, um padrão internacional usado para dar transparência e credibilidade às informações ambientais, com auditorias e checagens independentes.
Na prática, o plano é conectar as pontas e fazer com que as informações de todo o ciclo, da fábrica ao descarte, possam ser comparadas e comprovadas.
🔍 Entenda os termos técnicos do programa:
Interoperabilidade: significa que os diferentes sistemas (de empresas, governos e certificadoras) vão “conversar” entre si. Assim, um dado informado por uma indústria poderá ser checado por outro órgão ou parceiro, reduzindo falhas e duplicações.
Cadeia de custódia: é o caminho completo de um produto, do nascimento ao descarte. Ela mostra de onde veio a matéria-prima, como foi transformada e onde foi parar, garantindo rastreabilidade.
Mass balance: é um método usado no mundo todo para calcular quanto de material reciclado foi realmente usado em um produto. Ele evita que empresas declarem índices de reciclagem sem comprovação.
A COP30 será o momento de mostrar a maturidade técnica acumulada: ampliação de módulos de MRV (incluindo reuso e remanufatura em eletroeletrônicos), aceleração da interoperabilidade com modelos de cadeia de custódia (inclusive mass balance quando aplicável) e consolidação do selo verde do MDIC, que já oferecem uma linguagem de mercado para comunicar conformidade verificada por terceira parte.
Limites da reciclagem?
Por outro lado, com o avanço da iniciativa, a discussão sobre os limites da reciclagem tem ganhado espaço entre pesquisadores e profissionais do setor, que questionam até que ponto ela, sozinha, é capaz de responder ao desafio dos resíduos no país.
Para Rafael Eudes, da Aliança Resíduo Zero Brasil, falta transparência sobre como o Recircula Brasil vem sendo implementado e clareza quanto aos seus objetivos.
“As políticas públicas devem atuar na prevenção, reduzindo a produção de plásticos desde a origem, e não apenas gerindo resíduos após o consumo”, afirma.
Segundo ele, o problema é estrutural. “A crise dos plásticos percorre todo o ciclo de vida do material, da extração de combustíveis fósseis, que agrava a crise climática, até o descarte final”, explica.
O Brasil, por exemplo, despeja 1,3 milhão de toneladas de plásticos por ano nos oceanos, segundo um relatório recente da ONG Oceana, o que representa cerca de 8% da poluição plástica marinha global. O país é o maior poluidor da América Latina nesse aspecto.
A crítica de Eudes ecoa um movimento mais amplo. Em 2025, o governo lançou a Estratégia Nacional do Oceano Sem Plástico (Enop), com diretrizes para prevenção e eliminação da poluição marinha.
O plano reconhece que o enfrentamento do problema exige ações que vão além da reciclagem, abrangendo desde a redução na produção até o consumo responsável.
Ainda assim, a reciclagem no Brasil continua limitada. Apenas 8% dos resíduos sólidos gerados são reciclados, de acordo com dados do setor.
Mesmo com o crescimento de 8% na produção nacional de plástico reciclado em 2024, o que elevou o volume a 1,012 milhão de toneladas, o país ainda vê aumentar o total de plástico produzido. Ou seja, recicla-se mais, mas também se consome mais.
Lixo plástico acumulado em área de manguezal na Baía do Panamá, na Cidade do Panamá, em 6 de dezembro de 2024.
Enea Lebrun/Reuters.
Por isso, Eudes alerta que a própria reciclagem tem limites físicos e químicos.
“A cada ciclo, o material perde qualidade, e sem regulação adequada sobre a toxicidade dos aditivos e contaminantes, o processo pode gerar impactos de longo prazo à saúde e ao meio ambiente”, diz.
No cenário global, apenas 9% dos resíduos plásticos são efetivamente reciclados, segundo a ONU.
No Brasil, o índice para embalagens plásticas atingiu 24,4% em 2024, de acordo com o setor.
Para tentar mudar esse cenário, o governo federal lançou uma nova norma de logística reversa que estabelece uma meta ambiciosa: coletar e reciclar metade das embalagens até 2040.
Mas para organizações como a Aliança Resíduo Zero, o desafio é mais profundo. Desde 2014, o grupo defende políticas integradas que incluam compostagem, redução de rejeitos e metas vinculadas às emissões de gases de efeito estufa.
“O debate sobre resíduos não pode ser dissociado da crise climática”, ressalta Eudes.
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