Estrada, porteiras fechadas e silêncio: quilombolas lutam para visitar cemitérios ‘escondidos’ no Dia de Finados em MT
01/11/2025
(Foto: Reprodução) Quilombolas lutam para visitar cemitérios ‘escondidos’ no Dia de Finados em MT
O Dia de Finados, celebrado neste domingo (2), é o único dia em que as famílias do Quilombo Abolição podem prestar homenagens aos familiares mortos, porque o cemitério Garimpo/Lajinha está localizado dentro de uma propriedade particular em Santo Antônio do Leverger, a 35 km de Cuiabá.
Neste ano, contudo, as famílias relatam dificuldades para acessar o local. Um grupo de 15 quilombolas chegou a alugar uma van para fazer o muxirum no cemitério – que vem do tupi-guarani e significa “mutirão” de limpeza. Até agora, o grupo não conseguiu autorização dos proprietários.
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Por outro lado, a Associação dos Produtores Rurais da Serra de São Vicente informou, por meio de nota, que conhece apenas o cemitério Chico Rifa de uso comunitário antigo, utilizado há décadas por moradores, trabalhadores rurais e famílias das propriedades vizinhas, sem vínculo étnico exclusivo.
A associação ressalta que sempre respeitou “a memória e a afetividade vinculadas ao cemitério Chico Rifa, permitindo o acesso de visitantes e familiares em datas simbólicas como o Dia de Finados, sem jamais criar embaraços ao exercício de fé ou de recordação.”
Ao g1, a presidente da Associação do Quilombo Abolição, Natalina Augusta da Cruz, contou que sua avó Maria Auxiliadora das Chagas está enterrada no local desde julho de 1982, quando morreu de um infarto aos 59 anos.
“Ela fazia um bolo de palha. Ninguém sabe fazer igual ao dela. O peixe, o feijão, era tudo muito bom. O bolo era feito na palha, e ficava muito gostoso. Na época não tinha leite condensado, essas coisas. Não tinha nem leite, era só água. Minha avó era muito amada”, lembrou.
O defensor público Renan Sotto Mayor da Defensoria Pública da União (DPU) solicitou na quinta-feira (30), por meio de ofício, que os quilombolas pudessem adentrar na propriedade, mas sem sucesso.
O g1 procurou a prefeitura de Santo Antônio do Leverger que informou que está organizando uma equipe para ir ao local o mais breve possível e fazer um estudo sobre o caso.
Esse impasse aumentou a partir de 2020, de acordo com Natalina. No começo, uma conversa com o caseiro resolvia, segundo ela. “Agora está ficando mais difícil. Nosso medo é não poder entrar mais. É triste nossa situação, porque não queremos tomar nada de ninguém. Só queremos fazer uma oração e limpar o lugar. Não queremos que acabem com o cemitério”, afirmou.
O quilombo, contudo, ainda não foi reconhecido como território pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e possui apenas uma Certificação de Autorreconhecimento emitida pela Fundação Cultural Palmares.
Quilombolas visitam cemitério Garimpo/Lajinha em 2023 em MT
Arquivo pessoal
A associação do quilombo alega que existem quatro cemitérios espalhados na região:
Garimpo/Lajinha> são mais de 20 famílias (dentro de uma fazenda/restrito)
Anjinho/Pomar> mais ou menos 10 crianças e um adulto (destruído)
Lagoa/Água Azul> mais ou menos 15 famílias (destruído)
Pedreira> mais de 100 famílias (aberto)
Remanescente de uma das famílias fundadoras no quilombo e moradora da região, Georgina Maria Chagas contou que conheceu o cemitério Garimpo/Lajinha. “Nós não temos mais acesso ao Garimpo/Lajinha. No Lagoa/Água Azul destruíram com asfalto. Lá só tinha ossos esparramados. Só temos acesso ao cemitério da Pedreira, onde acendemos velas e rezamos”, afirmou.
Ela explica que os cemitérios são espalhados porque, naquela época, as famílias quilombolas viviam cada uma em um povoado diferente. “No garimpo, morava muita gente. A gente morava ali, quem morria era enterrado ali. Cada lugar um povoado. Então, enterrava perto de onde morava”.
São aproximadamente 22 famílias do quilombo Abolição que ainda vivem nos territórios ancestrais, mesmo às margens da rodovia rumo a Barão de Melgaço, de acordo com a dissertação de mestrado de Cléia Batista da Silva Melo, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
“A família vive na beira da estrada. Estão todos encostados em barracas. Eles estão lá porque foram expulsos em 2012 e não têm onde morar”, disse Georgina.
A pesquisa ainda apontou que 140 famílias vivem fora da terra espalhados em Santo Antônio do Leverger, Várzea Grande e Cuiabá. Esse número pode refletir alguma variação em razão da mobilidade das famílias, que ora estão no território, ora estão fora dele.
Mapa mostra dimensão do quilombo Abolição em MT
Incra
Lagoa/Água Azul
Outro impasse envolvendo os quilombolas aconteceu no cemitério Lagoa/Água Azul. Isso porque, em 2023, foi construída a BR-361 sobre esse cemitério, segundo relato dos moradores.
O g1 procurou a Secretaria Estadual de Infraestrutura e Logística (Sinfra), mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
Um casal — não identificado — enviou um vídeo ao g1 em que conta que, quando começaram a abrir a estrada, os trabalhadores da BR-361 encontraram ossos do antigo cemitério.
“Tinha ossos no meio da terra, ainda tem entulhos. Eles falaram que aqui tinha cruz, e o trator passou e tinha osso. Ele caçou a cruz e eu levei um pedaço da cruz. Tinha osso que está no meio do entulho. Estamos esperando uma resposta da Justiça", contou.
Estrada sendo aberta na região do cemitério Lagoa/Água Azul em MT
Arquivo pessoal
O Ministério Público Federal (MPF) chegou a entrar com uma ação civil pública contra o governo estadual para que a comunidade quilombola fosse ouvida antes do início das obras.
“Não respeitaram nossa família, nossos entes queridos. E acabaram com eles. Um cemitério que ficou só na lembrança no meio do entulho", disse o casal.
Um dos moradores ajudou na abertura de três covas, na época. "Só podia cavar meio metro porque senão enchia de água", contou. Isso acontece porque a região alagava com facilidade.
Já a moradora Marilza Miranda, de 46 anos, contou que tinha quatro parentes enterrados na Lagoa/Água Azul. Ela contou, em resumo, algumas características de cada um deles. Ela disse que, na época, não tiraram nenhuma fotografia deles.
Familiares de Marilza enterrados onde hoje passa a rodovia:
Catarina Rodrigues de Miranda > "Minha tia Catarina cuidava de todos, ficava em casa e fazia serviço de casa. Ela era quilombola, alta, forte e cuidava de todos."
Vitorino Rodrigues de Miranda > "Meu tio Viturino era o mais esperto. Vinha para a cidade e vendia as coisas. Eles colhiam e comprava o que estava faltando em casa."
Sebastiana Rodrigues de Miranda > "Minha tia Sebastiana era cega, mas fazia de tudo, tocava tambori, cortava as coisas para o almoço com uma rapidez como se tivesse vendo."
Hugo Rodrigues de Miranda > "Meu tio Hugo trabalhava em restaurante, era longe, mas ele ia de ônibus de Barão de melgaço que passava por ali".
No estado, há mais de 11 mil quilombolas, de acordo com dados do Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística (IBGE). Deste total, 10.771 moram fora do território e outras 958 ainda vivem dentro do território.
Conforme o levantamento, Poconé é o município com mais quilombolas (3.445), seguido de Vila Bela da Santíssima Trindade (2.589) e Várzea Grande (1.842). Isso coloca o estado como 18º no ranking com mais quilombolas no país.
Quilombo Abolição
A população negra vive na região de Abolição desde o século XVII, conforme análises documentais feitas por Cléia Batista da Silva Melo, na dissertação de mestrado da UFMT. Segundo a pesquisa, a maioria dos remanescentes da comunidade aguardam a titulação das terras para voltarem para casa.
"Porém, a dificuldade enfrentada está na própria legislação que reconhece o direito apenas aqueles que estejam ocupando o território. Sem levar em consideração que a sociedade está em constante transformação, e uma dessas transformações é o fato de muitos remanescentes não estarem ocupando as terras de seus territórios. E essa ocupação física não pode significar exclusividade de direitos ou exclusão dos mesmos, pois pensamos que o quilombola não vai deixar de ser quilombola por estar distante fisicamente do seu território", destacou no estudo.
Os quilombolas viviam na Fazenda Abolição sob o comando de Julio Strübing Müller, conforme relatório do Incra, e marcou toda a comunidade que conviveu com ele por quase meio século. O documento ainda revela que as moradias dos quilombolas acompanhavam os cursos de água e estavam associados a momentos marcantes das famílias, como nascimentos, casamentos, bailes, festas de santos, mas também aos momentos de dor, doenças e mortes.
"Especial atenção merecem os cemitérios que nos indicam não só a importância destes sítios, mas o grau de autonomia e de domínio que seus moradores mantinham sobre eles. Não fosse assim, não lhes seria permitido manter seus mortos nas proximidades, indicando ainda para a extensão temporal destas ocupações, cujo caráter não foi de forma nenhuma transitório", conclui o documento.